Benjamin Renzo no Alentejo (excerto: capítulo I)
"Benjamin Renzo no Alentejo" venceu o Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes 2018.
A novela venceria também o Prémio Literário Palavras de Fogo (júri: Paula Arnaut, Ana Filomena Amaral, Gonçalo M. Tavares e Hélder Beja ) caso não tivesse já ganho o Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes.
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Capítulo I
Foi em terras acesas, onde ventos ressoavam em covas profundas, que acordou. A monotonia do solo, um manto ocre ruborizado, apenas era quebrada pela silhueta das árvores que o sol sobre ela projectava.
Para lá disso pairavam contornos esfumados de montanhas longínquas e arbustos que o vento não conseguia influenciar.
Nada mexia para além dos olhos. Tê-los abertos ou fechados pouca diferença fazia. Ouvia um ruído agudo, como quando no cinema nos desejam fazer crer que estamos perante um grave acidente.
Quando o zumbido cessou, os ouvidos captaram um barulho natural. Uma cigarra cantava, mas não lhe era possível apurar a distância a que estaria.
À medida que o seu olhar desembaciava, uma estranha amálgama de ferro dobrado e pedaços de vidro salpicados de sangue lhe eram revelados.
Gritou, mas apenas o eco lhe foi devolvido.
O corpo não reagia.
Apenas os olhos mexiam.
Tudo o resto era dor.
Lentamente, os ossos dos dedos começaram a mexer. Abriu os olhos. Um caracol deixava um rasto de baba que atravessava o vidro à sua frente. Pensou que poderia recorrer a esse rasto para não perder a noção de tempo.
Queria ver mais mas não conseguia mover o pescoço. Por enquanto apenas os dedos. E devagar. Mais devagar do que o movimento do caracol.
Abria os olhos para o dia e para a noite. Estava entre a claridade e a escuridão.
Apesar de sentir fome e sede, interpretava essas carências de forma positiva: como um sinal de que ainda estava vivo.
Com esforço, rodou ligeiramente a cabeça. Através de uma abertura, viu um chão azul e um céu amarelo. O cansaço não lhe permitiu questionar o quão estranho isso era.
Aos poucos o corpo começou a responder. Osso por osso, tendão por tendão. Um músculo aqui, outro ali. Cada vez mais se sentia um e não várias partes desassociadas.
Encaixou as mãos na extremidade de uma chapa metálica, cerrou uma delas contra a ferrugem até fazer ferida e fez uso da pouca força de que os braços dispunham, puxando o corpo em direcção à mancha de cores exterior.
Um estalido oco abandonou os joelhos enquanto se levantava. Por fim o céu era azul, e o amarelo do chão roçava-lhe os tornozelos sob a forma de ervas cortadas há poucos dias. A sua textura era lenta, quente e circular, como em um quadro de Van Gogh.
Do manto amarelo amarelo nasciam algumas árvores de ar tacanho mas robusto e meia dúzia de rolos de feno, cujo tamanho diminuía até desaparecerem no horizonte.
O ar era quente e imóvel e, colando-se à sua pele, aquecia-a, produzindo pequenas gotas de suor. Limpou a testa, não porque algo nela o incomodasse, mas porque precisava de se saber capaz do movimento.
Voltou-se para o local de onde rastejara.
Um carro estava amolgado contra uma árvore. O veículo estava invertido, comprimido a metade do tamanho. A chapa entrava tronco dentro e quase lhe dava a volta. Pequenos fios de fumo escapavam por entre o metal, juntando-se à atmosfera num gesto cinematográfico.
Ouviu de novo a cigarra. Mas o som que fazia, e que ainda há pouco o incomodava, parecia-lhe agora uma melodia.
Caminhou vagarosamente na sua direcção, tentando não fazer barulho, mas a erva seca crepitava por debaixo dos pés. Deu cerca de dez passos, mas a cigarra continuava a cantar. Voltou ao ponto de partida. Caminhou na direcção oposta. A melodia mantinha-se.
Não conseguir apurar a origem de um som tão próximo fê-lo questionar as capacidades do ouvido humano.
Ou teria o acidente afectado-o mais do que julgara?